Pesquisa inédita revela desigualdade na distribuição da Lei Rouanet na cidade de São Paulo
Estudo territorializado aponta concentração em áreas centrais e ausência quase total de captação nas periferias.
Sem dúvida, a Lei Rouanet em seus mais de 30 anos de existência tem impulsionado e democratizado os recursos para as produções culturais de todo o país. Atingindo, particularmente nos últimos dois anos, captação recorde para realização simbólica e artística da cultura brasileira.
Ver matéria da RAIZ: Lei Rouanet: 33 anos transforando a cultura brasileira — Revista RAIZ – cultura brasileira
Mas, ainda necessita de mecanismos que impulsionem ainda mais seus aspectos democratizantes.
Uma pesquisa inédita realizada pelo Observatório Ibira 30 (Bloco do Beco) e pela Universidade Federal do ABC (UFABC), com apoio da Fundação ABH, revela como os recursos da Lei Rouanet foram distribuídos de forma profundamente desigual na cidade de São Paulo entre 2014 e 2023.
Combinando análise territorial detalhada e abordagem quantitativa e qualitativa, o estudo comprova que os distritos mais vulneráveis da capital paulista têm acesso praticamente nulo ao principal mecanismo de fomento cultural do país.
A Lei Rouanet, criada em 1991, consolidou-se como instrumento central de incentivo à cultura no Brasil. No entanto, a análise realizada mostra que, em vez de combater desigualdades, a lógica atual de financiamento contribui para reforçá-las: 88,86% dos recursos captados na cidade ficaram concentrados na região central (Área 1), onde vivem apenas 17,21% da população. Em contraste, a Área 3 — composta por distritos periféricos com maior vulnerabilidade social e onde reside mais da metade da população paulistana — captou apenas 1,38% dos recursos.
Destaques do levantamento
Distribuição territorial da captação
- Área 1 (centro expandido, baixa vulnerabilidade): R$ 5,25 bilhões captados (88,86% do total), com captação per capita de R$ 2.660.
- Área 3 (periferias paulistanas): R$ 83 milhões (1,38%), com captação per capita de R$ 14,20.
- 26 distritos — entre eles Jardim Ângela, Itaim Paulista, Iguatemi e Parelheiros — não registraram nenhuma captação de recursos no período analisado.
Distritos com maior captação per capita
- Pinheiros: R$ 18.694
- Bela Vista: R$ 9.260
- Bom Retiro: R$ 7.478
Distritos com captação zero
- Jardim Ângela, Capão Redondo, São Mateus, entre outros.
Conclusões do estudo
- A cidade de São Paulo sozinha captou, em 2024, mais do que todas as regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sul juntas.
- Quase 1/3 do orçamento nacional da Lei Rouanet ficou concentrado na capital paulista.
- A maioria das periferias permanece invisibilizada nos mecanismos de fomento, com baixa taxa de aprovação e conversão de projetos culturais.
- A infraestrutura cultural é extremamente desigual e afeta diretamente a capacidade de captação das iniciativas periféricas.
Metodologia
O estudo foi desenvolvido a partir de microdados públicos extraídos da plataforma SALIC (Sistema de Apoio às Leis de Incentivo à Cultura), cruzados com dados da Receita Federal (Redesim) e com recortes territoriais da plataforma GeoSampa. O recorte territorial seguiu os critérios da Lei Municipal de Fomento à Cultura da Periferia (Lei nº 16.496/2016), que segmenta a cidade com base em indicadores de vulnerabilidade social.
Além da análise estatística, foram coletados depoimentos e estudos de caso de iniciativas culturais periféricas para compreender os obstáculos enfrentados por proponentes de baixa renda e com menor acesso a redes de patrocínio.
Recomendações do estudo
- Territorializar os dados da Rouanet para garantir transparência geográfica e monitoramento da distribuição dos recursos.
- Revisar o modelo de financiamento via captação direta, que favorece regiões com mais acesso à infraestrutura e redes empresariais.
- Incluir critérios redistributivos e sociais no processo de avaliação e aprovação de projetos.
- Fortalecer políticas públicas de base, como o Programa de Fomento à Cultura da Periferia e o VAI, que adotam lógica distributiva.
- Reconhecer a cultura como um direito, e não um privilégio, assegurando que todos os territórios tenham acesso justo aos instrumentos de fomento.
A pesquisa contou com o apoio da Fundação Tide Setubal no evento de lançamento e está disponível para acesso público.