Ivan Vilela: A pandemia só tem sido suportável por que existe arte
De Portugal, o violeiro conta sobre seus projetos e o que fez para superar uma depressão que o perseguia há anos em plena quarentena
Por Gustavo S. Cavalcante
Em tempos de reclusão, Ivan Vilela aproveita do momento para conviver com o filho, pensar na vida e em si mesmo. Imerso numa profunda reflexão se põe a prova em leituras, em seu trabalho musical e nos motivos pelos quais andava triste nos últimos anos.
“Vinha tendo um problema muito sério com depressão, cara. O remédio que usava vinha do Brasil e de repente parou de vir, então tive que me auxiliar”, conta Ivan, “e quando percebi que agora só eu podia dar conta, fui conversar comigo mesmo e percebi que nada disso partia de mim. Dentro dessa narrativa a depressão foi desaparecendo”.
Ivan está em Portugal, onde foi chamado antes da quarentena para participar de um projeto brasileiro voltado a música de viola. Nos dias em que superava a falta do remédio, buscou auxílio de outros modos. “Eu queria tomar uma cachaça e aqui só tinha 51. Pudera. Mas gosto mesmo é de pinga branca – é um gosto diferente”.
Quando deu por nota o início da quarentena em Portugal, o Brasil ainda não vivia o isolamento. Nas terras portuguesas a pandemia chegou antes e tinha prisão para aglomerações – ao que lhe sobrou apenas as idas ao mercado, a fim dos produtos básicos e de uma garrafa de 51.
Acostumado ao estilo de vida recluso o violeiro, que também é professor da USP (Universidade de São Paulo), passou a se concentrar no conteúdo de suas aulas. “Na USP sou professor de três matérias: viola brasileira, percepção musical e história da música brasileira. Por conta disso trabalho muito com pesquisa da música popular, sobretudo a sertaneja”, conta o pesquisador formado na UNICAMP (Universidade de Campinas).
Com as temáticas disciplinares, livros e discos embaixo do braço, a quarentena o tem ajudado a se reinventar. Além da cura para os seus pesares, desenvolveu em casa um novo modo de tocar uma viola de 10 cordas. Entre noção e técnicas ele se apega aos arranjos de suas novas composições, as que tem lhe servido como material para preparar apresentações pela internet.
Lives
“Nunca tive tanta exposição”, aborda o pensativo violeiro. “dei uma aula on-line que teve em média 200 pessoas assistindo (…) dificilmente que em sala de aula poderia ter tanta gente”.
Sua experiência na internet é uma pauta dentre as tantas reflexões que têm tido. Vê com desdém a perda do contato físico, primordial para um artista que requer palco, mas olha admirado o acesso a que estudantes de cultura tiveram no Festival Música em Casa, no Rio Grande do Norte. “17 mil pessoas acompanhavam cara, qual o alcance entre estudantes para um aceso desse tamanho?”.
Descontraído e alegre, Ivan recorda-se de um tempo remoto em que os casais se conheciam por carta e aborda que hoje se conhecem por vídeo. Mas o que mais lhe chama atenção é que a quarentena fez com que as pessoas dessem as coisas o real valor que possuem.
“Não temos viajado e fomos obrigados a parar e ver o valor das coisas. Cara, percebi logo que o consumismo não é importante assim e veja que somos bombardeados o tempo inteiro por propagandas que dizem que comprar é antidepressivo. Esse é mais um problema que pude refletir e que me ajudou a superar a depressão”, desabafa o professor.
Para escapar das propagandas e ter alternativas de uma vida mais alegre, Ivan indaga que só basta abrir os olhos para os caminhos artísticos. “A gente não vive sem arte. Me conta numa semana que você fica sem ouvir uma melodia (…) a arte é a expressão do homem na natureza, tem poder de cura e muitas vezes a gente ignora isso”.
Ao que indica, dos livros que está lendo – estudos sobre a cultura popular na idade média e na renascença – do que tem ouvido – a sua própria viola de 10 cordas ressonante inspirando-se no compositor baiano Elomar Figueira de Mello – Ivan curou-se através daquilo que mais acompanha: as artes do povo para o povo.
“Cultura popular pra mim é o que chamo de folclore. Para mim, artistas desse campo deveriam ser considerados como patrimônio público e o Estado deveria resguardá-las” indaga Ivan que logo complementa que “a pandemia só tem sido suportável porque existe arte”.
Saudades do Brasil
Quando imerge nos seus estudos eruditos, buscando ouvir as melodias medievais que contam a história do povo europeu, o que ressoa em seus pensamentos é de um som bem distante do velho continente. A música popular brasileira o toma emprestado e logo Ivan viaja para um Brasil colonial.
“A nossa música popular conta a história do povo brasileiro (…) é só analisar que é um povo que teve seu surgimento predominantemente oral. Quando o erudito chega no país, lá no século 19, acaba por ser o grande cronista dos acontecimentos de nosso povo que não teve outra maneira de registrar suas histórias”, ensina o violeiro como quem ministra aulas na maior universidade do Brasil.
Com a pandemia o seu apartamento vira um espaço musical onde as paredes portuguesas rebatem notas brasileiras. Ivan inspira suas saudades do Brasil, mas quando diz que vai voltar, os amigos próximos o acusam de louco. “Mas não tem outro lugar que eu queira estar, não tem outro lugar que faz música como o Brasil, uma música envolvente (…) se toda que vez ouço uma canção caipira eu estivesse de volta…”
Na sua trajetória já conheceu muitos brasis dos quais lembra com carinho. Numa dessas andanças foi parar no Vale do Jequitinhonha, no nordeste do estado de Minas Gerais. Por lá tocou no maior festival da região, o Festivale (Festival da Cultura Popular do Vale do Jequitinhonha).
Se a música o envolve, Ivan aborda que a cultura também está no comportamento de um povo que acolhe. “estive em Araçuaí e gravei com os Trovadores do Vale (um tradicional coral da região de Jequitinhonha), e num determinado dia precisei migrar e pedi carona na estrada. Quando cheguei a meu destino fui recebido por um homem que me analisava friamente quando disse “cê deve tá com fome, entre, vou lhe servir o jantar’ e essa solicitude tão genuína e tão brasileira é uma das nossas culturas mais primordiais”.
Futuro pós-quarentena
Apesar da saudade, Ivan se resguarda. Para o violeiro a pandemia deve voltar algumas vezes ainda – o que de certo modo não o permitirá visitar nem o Jequitinhonha, nem outro lugar. Mas por outro lado percebe que o universo da arte estará mais ampliado.
“Não haverá outro modo senão o aumento da demanda pelo serviço online. Eu vou dar aulas e tendo uma câmera ligada aqui, terá acesso para muito mais gente assistir. Se não posso ir ter com os meus presencialmente aquele abraço, por outro lado a internet vem para corroborar com o trabalho artístico e poderei ver a todos e todos poderão me ver”, argumenta Ivan Vilela com sensatez.
A vida prossegue dentro da pandemia e esse cenário, segundo o professor, faz com que a arte torne as pessoas mais sensíveis. Se há maior tolerância, sua briga particular é fazer com que a sensibilidade artística atinja o maior número de pessoas.
Dentre suas dores passadas e a compreensão pelas dores de quem perde alguém pela pandemia, é com sensibilidade que acredita ver um mundo melhor – um modo tolerante e sensível que acredita ver possível através da arte, um caminho que faz as pessoas pensarem.
“O que tem em todo lugar? Tem música, por exemplo. E na pandemia as pessoas estão sendo obrigadas a ouvir canções de raiz (…) essa é a grande busca da minha vida, nas aulas que ministro busco passar um pouco disso, do alcance maior através de humanos mais sensíveis”, argumenta Ivan.
Para o violeiro e professor que se viu recuperar de uma velha depressão entrando em reflexões que o levaram a viajar pela vida, sobretudo pelo passado, encontrou sua cura e uma missão: “Ao meu público quando toco, aos meus alunos quando em aula, quero levá-los a essa viajem aonde vão acabar por descobrir que tem muito de hoje que aconteceu ontem”.
SOBRE IVAN VILELA
Compositor, arranjador e instrumentista de viola brasileira. Professor da Universidade de São Paulo. Pesquisador do INET na Universidade de Aveiro.
Nascimento: 28 de agosto de 1962, Itajubá, Minas Gerais
Livros: Cantando a própria história: Música Caipira e Enraizamento
Álbuns: Dez Cordas, Encontro, Paisagens, A Força do Boi, MAIS
Filmes: Tokiori – Dobras do Tempo
Formação: UNICAMP Universidade Estadual de Campinas, Universidade de São Paulo
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