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A arte de imprimir emoções – Uma homenagem a J. Borges

Colaborando com a RAIZ

A técnica artesanal de impressão tendo como base tacos, pedaços de madeira, remonta à Antiguidade, as civilizações orientais, presumindo-se que o primeiro trabalho ilustrado por xilogravura tenha ocorrido no ano de 868, com a publicidade de Sutra Diamante, na China.

O processo de reproduzir imagens de fontes originais em madeira gravada ampliou a circulação de informações e manifestações artísticas, imprimindo-se, nas oficinas e tinturarias, figuras, símbolos ou palavras, em papéis e tecidos.

A tecnologia da xilogravura chega ao Ocidente, mais precisamente à Europa, no século XIV, segundo informa Joseph M. Luyton, graças ao trabalho da Igreja Católica, difundindo, e muito, o emprego das matrizes em madeira para copiar santos e cenas bíblicas. Assim, essa técnica alcança vários países, diversificando a produção de imagens com as mais distintas finalidades ilustrativas. Os historiadores de arte atribuem o crédito de mais antigo documento xilogravado da Europa a uma ilustração em papel da Virgem de Malines, na França.

No Brasil, as missões religiosas católicas também foram responsáveis pelo emprego da xilogravura, multiplicando textos de orações e estampas de santos, o que muito colaborou no processo de catequese e fixação da religião oficial da época.

A popularização da técnica concentrou-se, porém, no Nordeste, fortemente vinculada à produção de folhetos de literatura de cordel.

A xilogravura das capas, originalmente única ilustração da obra, aliás, insinua o que o artesão quer revelar do teor do folheto, com intenção de tornar a venda mais direta e eficaz. Isso até hoje acontece, vendo-se, ainda, inclusão de fotografias, desenhos e até ilustrações em cores nas capas dos também chamados cordéis.

J. Borges - Divulgação
J. Borges – Divulgação

O trabalho do xilógrafo casa-se com o do poeta, naturalmente, na maioria dos casos, unificando os afazeres de tipógrafo, gravador, escritor e, principalmente, comunicador social. Esse conjunto de habilidades concentra-se nos romances, nas histórias e nos temas gerais da literatura de cordel, cujo público é certo, alcançando milhares de pessoas.

São assuntos contemporâneos, temas religiosos, geralmente aqueles mais fincados na religiosidade popular, como Padre Cícero; são heróis, mitos – Lampião no Inferno; são também assuntos medievais, como Carlos Magno e os doze pares de França, fazendo com que as capas dos folhetos, ilustrações em xilogravuras, conformem uma incalculável memória iconográfica no correr dos tempos.

O xilogravador retém no taco de madeira um território concentrado da criação ou ainda da manutenção iconográfica de temas, estilos e soluções estéticas peculiares ao rico e amplo imaginário da Região Nordeste. O mestre xilógrafo traduz memórias remotas de seus ancestrais mestres na arte de gravar com o uso de goivas, estiletes, faquinhas e outros instrumentos inventados ou recriados, um caminho de arte e de expressão que ocupa um dos lugares mais notáveis da nossa arte popular.

Nesse campo, J. Borges destaca-se como mestre que une iconografia ao texto poético, em performance expressiva e telúrica.

Expo-J.-Borges--xilogravura-Forró-Nordestino--divulgação
Expo-J.-Borges–xilogravura-Forró-Nordestino–divulgação

José Francisco Borges, o J. Borges, nasceu em 20 de dezembro de 1935, e se “encanta” em 26 de julho de 2024 em Bezerros, agreste de Pernambuco, onde viveu, ilustrando e publicando seus folhetos numa tipografia que é também loja. Aos 10 anos de idade trabalhava na agricultura, fazia colheres de pau que vendia na feira. Em 1964, começou a escrever folhetos e a fazer xilogravuras em tacos de pinho e imburana.

Da autoria de J. Borges são, por exemplo: As andorinhas da fé ou ladrões do pé da serra, As bravuras de Cipriano e os amores de Jacira, Domiciano e Renato ou o viajante da sorte, O exemplo da cabra que falou sobre o crime da corrupção, O mistério dos três carvões e os horrores da fome, Nazaré e Damião – o triunfo do amor entre a vingança e a morte, Palavras do Padre Cícero ou visita do Horto, O verdadeiro aviso de Frei Damião sobre os castigos que vêm.

J. Borges notabiliza-se como autor de peças isoladas, xilogravuras independentes do cordel, mantendo, além das impressões tradicionais em preto-e-branco, uma expressiva produção em policromia, retratando em seus temas regionais uma liberdade do criar, de inventar sobre os tacos de madeira, linguagens sensíveis próprias do mestre.

Assim, J. Borges, mestre xilógrafo, continua seu mister de autor, de mantenedor de memórias pessoais, da sua região, da sua história.

Os xilógrafos, além de concentradamente se aterem àquele sonho do típico, transgredem, transformam essa tipicidade, lançando-se a descobertas que expressam a contemporaneidade. Convivências da técnica milenar com adaptações em forma e em temas que tratam o cotidiano, a festa, as descobertas, continuando no traço, no sulco sobre a madeira, nas gravuras impressas sobre papel, identidades que auferem valor, reconhecimento e apreciação da crítica.

Conheci, pessoalmente, J. Borges em 1980, na sua oficina de poeta e gravador em Bezerros, pois já conhecia o artista principalmente pelos folhetos de literatura de cordel. Também, tive a honra de publicar pela primeira vez J. Borges em 1985 com a obra ”Os Borjes : xilogravuras de Pernambuco “, edição COPERBO, quando reuni algumas gravuras de temática popular e tradicional da sua região.

A Briga na Furna de J.Borges
A Briga na Furna de J.Borges

J. Borges é um artista de grande impacto visual, com uma temática emocionantemente telúrica, um grande memorialista do imaginário pernambucano. Ele fez de cada gravura uma linda história contada pelas imagens, sempre cheias de tanta energia e sensibilidade, que verdadeiramente pareciam poder se mover e falar. Um autor de grande gentileza, verdadeiramente imerso no seu ofício.

O legado de J .Borges é diverso, reúne muitas narrativas, e traz sempre suas contações iconográficas conectadas a um sentido de documentalista do seu território, da sua região.

J. Borges conseguiu trazer nas suas obras fortes referências artísticas para serem lembradas com emoção, e com o reconhecimento de verdadeiro mestres do seu ofício.

– J. Borges, foi uma honra tê-lo conhecido!

RAUL LODY

Colaborando com a RAIZ