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Mulheres do patrimônio cultural de Pernambuco têm suas histórias em plataforma online

Colaborando com a RAIZ

Projeto documental, inédito, busca registrar, documentar, catalogar, salvaguardar e narrar, por meio dos registros de áudios, vídeos e textos, a biografia de 15 mulheres ligadas ao Patrimônios Material e Imaterial que da região da Mata Norte do Estado.

Por séculos, as mulheres negras, periféricas, rurais e de comunidades tradicionais estiveram no centro da criação cultural brasileira, mas raramente foram reconhecidas como autoras de sua própria história. Nos engenhos e nas feiras, nas cozinhas e nas festas, foram elas que transmitiram saberes, ergueram tradições, preservaram a fé, moldaram a arte e sustentaram as bases da vida social e simbólica. Ainda assim, o registro de suas trajetórias permaneceu quase sempre ausente das páginas oficiais, relegado ao esquecimento.

Agora, parte desse silêncio começa a ser revertido. A Mata Norte de Pernambuco — território moldado pela cana-de-açúcar e pela força das manifestações populares — ganha um espaço digital dedicado à memória dessas mulheres e ao papel que desempenham na formação do patrimônio cultural pernambucano.

O site do projeto Nossa História, Nossa Memória – Temporada Mulheres na Cultura está disponível em https://nossahistorianossamemoria.com.br/terceira-temporada/ e reúne um acervo audiovisual gratuito, acessível e aberto ao público, que funciona como uma verdadeira biblioteca viva da cultura da Zona da Mata.

Mais do que um repositório, a plataforma é um gesto de salvaguarda. Ao unir som, imagem e texto, o site apresenta entrevistas, biografias, vídeos, fotografias e documentos pessoais que registram a presença feminina nos patrimônios materiais e imateriais de Pernambuco. Os bens imateriais aparecem nas danças, músicas, literatura oral, linguagens, culinária, rituais, festas, feiras e lendas, expressos nas vozes das mulheres que os mantêm vivos. Já os bens materiais se manifestam nas vestimentas, museus, teatros, igrejas, praças, monumentos, universidades, obras de arte e utensílios que compõem o cenário cotidiano dessas tradições.

A plataforma se expande como um território de vozes múltiplas, em que cada depoimento costura uma parte da história da Zona da Mata, onde o sagrado e o popular convivem. A produtora cultural e socióloga Zita Barbosa, de Lagoa do Carro, criou o Projeto Bolos de Pernambuco – Patrimônio da Culinária Pernambucana, transformando receitas familiares em instrumento de emancipação econômica e valorização do saber culinário das mulheres do interior. De Aliança, a trombonista Larissa Michele rompe as barreiras do machismo ao soprar o trombone nos grupos Coco de Fulô e Quarteto Tromboneando, transformando o som metálico em símbolo de resistência.

Foto Salatiel Cícero – Mulheres com atuação no patrimônio cultural de Pernambuco têm suas trajetórias registradas em plataforma online

Em Vicência, o maracatu também tem voz feminina. A professora Cristiane Mota, mestra do Maracatu Coração Nazareno, conduz um cortejo formado apenas por mulheres. Já Edriene Melo, liderança quilombola, defende a preservação da língua e das festas da comunidade de Trigueiros, onde o maracatu, a capoeira e o bumba meu boi são expressões de liberdade e pertencimento. Na mesma cidade, a produtora Juçara Ribeiro faz da dança e do corpo uma forma de memória viva no Museu Poço Comprido, onde coordena atividades de formação cultural.

De Carpina, as irmãs Rosemary e Ester Sabino representam duas linguagens distintas da mesma força criadora. Rosemary, à frente da Anilina Produções Criativas, é produtora e realizadora audiovisual, com passagem por festivais e mostras de cinema. Ester, conhecida como Ezter Liu, é escritora e foi a primeira mulher a vencer o Prêmio Pernambuco de Literatura, com uma obra que traduz, em versos, a condição feminina e o cotidiano nordestino.

Em Nazaré da Mata, cidade onde o maracatu rural ecoa como batida ancestral, a artesã Denise Maria José confecciona os chapéus das caboclas do Maracatu Feminino Coração Nazareno, enquanto a professora Wanessa Kariny Gonçalves atua em museologia comunitária e projetos de educação patrimonial, fortalecendo os vínculos entre escolas e cultura popular.

De Macaparana, a artesã Ninha do Crochê tece memórias e cores com linhas e agulhas. Suas peças, expostas em feiras e na Fenearte, são extensões de uma tradição aprendida ainda na infância, que mistura afeto e resistência. Em Tracunhaém, Mestra Jel do Coco lidera o grupo Panela de Barro, formado apenas por mulheres que cantam e tocam o coco de roda — ritmo que atravessa o tempo como herança da cultura afro-indígena.

Em Goiana, Neide do Cordel transforma o ensino da matemática em literatura rimada, provando que o conhecimento também pode nascer da poesia. Na mesma cidade, Silvia Cecília Gouveia, do grupo quilombola de São Lourenço, dá forma à memória das marisqueiras, produzindo artesanato a partir de conchas e redes inspiradas na pesca artesanal. Em Glória do Goitá, o mamulengo ganha novas mãos e novos rostos com Jacilene Félix e Titinha do Mamulengo, fundadoras do grupo Flor do Mulungu. Elas esculpem bonecos, manipulam histórias e provam que, no teatro popular, o riso também é um ato político.

Foto Salatiel Cícero – Mulheres com atuação no patrimônio cultural de Pernambuco têm suas trajetórias registradas em plataforma online

Cada uma dessas histórias revela o entrelaçamento entre o fazer artístico e a preservação do patrimônio. É a vida cotidiana transformada em cultura, o gesto ordinário elevado à condição de memória. “Mais do que registrar histórias, o que fazemos é restituir a dignidade simbólica de quem sempre esteve à frente da cultura popular, mas raramente teve o direito de ser ouvida. Essas mulheres são o coração da memória coletiva da Zona da Mata”, afirma o jornalista Salatiel Cícero, coordenador geral do projeto.

Pensada como uma plataforma inclusiva e democrática, a iniciativa oferece todos os conteúdos com legendas, transcrições, audiodescrição e tradução em Libras, garantindo acessibilidade plena e estimulando o uso pedagógico do material. “É como abrir uma porta para que as pessoas possam não só ouvir, mas também ler, interagir e se reconhecer nessas histórias. Queremos que esse acervo inspire novas gerações de mulheres, pesquisadoras e artistas a se reconhecerem como parte do patrimônio de Pernambuco”, acrescenta Salatiel.

A comunicadora popular Josinalda Marinho, apresentadora do podcast, destaca a emoção envolvida no processo de escuta e o poder transformador das narrativas. “Cada entrevista é um encontro de mundos. As histórias chegam carregadas de emoção, de luta, de ancestralidade. Não é apenas um registro técnico, é uma conversa entre gerações. É a voz de uma mulher de Nazaré dialogando com outra de Goiana, de Carpina, e Tracunhaém. É o Brasil profundo se reconhecendo no espelho da sua cultura”, ressalta Josinalda, que dá tom, ritmo e afeto às entrevistas.

O site também abriga artigos da professora e produtora cultural Joana D’Arc Ribeiro e do historiador Uenes Gomes, que analisam, entre outras manifestações, como o cavalo-marinho, o coco de roda, a ciranda e o maracatu rural, compreendendo-as não como espetáculo, mas como práticas sociais que moldam identidades e conectam gerações.

A trilha sonora, assinada pelo grupo As Januárias, traz o som das alfaias, das rabecas e dos pandeiros que acompanham o pulsar da Mata Norte. A equipe do projeto — formada por Josinalda Marinho (apresentação), Gedson Pontes (roteiro), Giselle Araújo (design gráfico), Humberto Victor (web designer), Crislaine Xavier (audiodescrição) e Hewelyn Kimberly (intérprete de Libras) — dá corpo e alma a um projeto que combina técnica, arte e compromisso social.

Realizado com incentivo da Fundarpe, da Secretaria de Cultura e do Governo de Pernambuco, por meio do Funcultura, o Nossa História, Nossa Memória – Temporada Mulheres na Cultura é mais do que um projeto de preservação: é um ato político, um gesto de reparação e continuidade. Ao devolver às mulheres da Zona da Mata o direito à palavra, o projeto afirma que a memória coletiva é feita também de vozes femininas que, entre danças, versos, receitas e rezas, sustentam os alicerces da cultura pernambucana.

Foto Salatiel Cícero – Mulheres com atuação no patrimônio cultural de Pernambuco têm suas trajetórias registradas em plataforma online

Serviço

Mulheres com atuação no patrimônio cultural de Pernambuco têm suas trajetórias registradas em plataforma online
Quando: Terça-feira, 28 de outubro
Onde: https://nossahistorianossamemoria.com.br/terceira-temporada/
Mais informações: www.instagram.com/podcastnossahistoria

Colaborando com a RAIZ