Rita Benneditto apresenta músicas inéditas entre ousadas releituras de canções
A música é a religião de Rita Benneditto. É para a música que Rita Benneditto bate cabeça! Sexto álbum solo dessa cantora maranhense projetada em escala nacional em 1997, Encanto expõe a devoção de Rita à deusa música, pondo fé num som afro-brasileiro de alcance universal e em repertório que, entre músicas inéditas como Guerreiro do mar (Márcio Local e Felipe Pinaud), alinha ousadas releituras de títulos conhecidos dos cancioneiros de compositores como Djavan, Gilberto Gil, Jorge Ben Jor e Roberto Carlos. Disco viabilizado pela Manaxica Produções e distribuído no mercado fonográfico pela gravadora Biscoito Fino, Encanto já traduz no título a amplitude de seu significado na carreira fonográfica da artista. Encanto, a palavra, pode significar tanto maravilhamento como remeter a encantaria, nome de evento religioso do Maranhão, ou mesmo ao ato de (en)cantar.
Acima de tudo, o álbum Encanto pode ser entendido também como um desdobramento de Tecnomacumba, vitorioso projeto da carreira de Rita Benneditto. O ponto mais forte na trajetória de uma intérprete saudada também por sua voz extremamente afinada, de emissão límpida, e pela coerência com que vem pautando sua carreira e fazendo suas escolhas. Para quem porventura ainda desconheça o fenômeno, Tecnomacumba foi um show que a cantora estreou em 2003 para uma temporada inicial de um mês, na extinta casa carioca Ballroom. Temporada que, por conta da adesão fervorosa do público brasileiro, já se estende por onze anos, tendo gerado disco de estúdio em 2006 e registro ao vivo do show editado em CD e DVD em 2009.
Ao beber da rica fonte da espiritualidade brasileira, Tecnomacumba extrapolou a questão musical, sem propor ou buscar conversões, mas chamando atenção para todo um rico universo cultural e religioso que parecia adormecido na mídia. Encanto desenvolve esse universo, expandindo o conceito e a fé na boa música através de repertório que abarca todos os credos. É uma nova celebração da vida através da música.
Rita Benneditto celebra a vida desde que nasceu em São Benedito do Rio Preto, cidade do Maranhão. A origem pautou em 2012 essa nordestina de fé – criada em família de onze irmãos – na escolha do novo nome artístico. Projetada como cantora com o nome artístico de Rita Ribeiro, a artista decidiu adotar o nome de Rita Benneditto há dois anos para evitar problemas com homônimos. Por isso, Encanto é o primeiro disco da artista maranhense a apresentá-la oficialmente como Rita Benneditto. “Já incorporei o Benneditto. A mudança do nome foi coerente com minha trajetória”, sentencia a artista, cantora versátil, com múltiplas possibilidades além do universo do Tecnomacumba, projeto que ampliou seu público e lhe deu legitimidade mercadológica.
Encanto aponta para algumas dessas múltiplas possibilidades através da seta da entidade Jurema, que direciona o disco a partir da primeira faixa, Centro da mata, tema de domínio público adaptado por Rita com Felipe Pinaud, que assina a produção de Encanto ao lado de Lancaster Lopes. Pinaud é um multi-instrumentista que, além de tocar sua guitarra, faz arranjos de cordas e flautas. Lancaster pilota baixo e programações. Ao lado de Rita, coprodutora de Encanto, a dupla criou a sonoridade contemporânea do disco. “São caras inteligentes, visionários, modernos”, caracteriza a cantora, parceria dos produtores em Pedra do tempo.
A figura de Jurema – uma “índia intergaláctica” na definição de Rita Benneditto – na abertura de Encanto puxa o fio da meada, evocando o primeiro álbum da cantora, cujo repertório já trazia adaptação (feita pela própria artista) do ponto intitulado Jurema. Já a presença de uma música de Roberto Carlos e Erasmo Carlos – Fé, lançada pelo Rei da canção brasileira em seu álbum de 1978 – corrobora a amplitude do conceito estético, musical e cultural que pauta Encanto. No imaginário do povo brasileiro, Roberto é um dos símbolos mais perenes da fé católica, da reverência à figura de Maria, mãe de Jesus. Na leitura rocker de Fé feita por Rita Benneditto, a música expande seu significado, podendo ser entendida também (e até) como uma declaração de amor de um cônjuge e/ou namorado para outro. A evocação do ritmo do rock complementa tal intenção, já que o rock é – mais do que um gênero – uma atitude que agrega os devotos desse ritmo de tom já universal e atemporal. Fé, a propósito, é o primeiro single do álbum Encanto a ganhar as rádios e a web.
A pluralidade e a amplitude do conceito de fé em Encanto são ratificadas por Extra, a recriação da música lançada por seu compositor Gilberto Gil em álbum de 1983, também intitulado Extra e gravado na fase mais pop da discografia do artista baiano. Com a leveza típica do reggae, ritmo que já é do mundo desde que extrapolou as fronteiras da Jamaica nos anos 1970, Rita Benneditto oferece uma visão transcendental da existência humana. Um padre jamaicano rastafári – Priest Tiger – encarna o mensageiro da fé ao ler o Salmo 24 (oração do Evangelho) na faixa. Detalhe técnico: no registro original de Gil, Extra foi gravado em compasso ternário. Na gravação de Rita Benneditto, feita com a adesão do grupo carioca Reggae B (liderado pelo baixista paralama Bi Ribeiro), o tempo da música é em 4.
Em Água, releitura da música lançada por Djavan em 1978, Rita Benneditto inverte novamente o tempo original (4 na gravação do artista alagoano e três no registro da cantora). É a primeira vez que a cantora grava uma música de Djavan. Aditivada com citação de Eu e água (Caetano Veloso), música lançada em 1988 pela divindade Maria Bethânia, Água é uma reverência a um elemento da natureza essencial para a preservação da espécie humana. É a água que cura e que mantém a vida, mas que também pode matar, nas ondas furiosas da natureza tão maltratada pelo próprio Homem.
A água também está entranhada, como elemento de renovação, em Banho de manjericão (João Nogueira e Paulo César Pinheiro), sucesso em 1979 da cantora mineira Clara Nunes (1942 – 1983), voz fundamental na propagação da música e da cultura afro-brasileira na década de 1970. O universo da umbanda, evocado nos versos do samba, é reforçado por Rita Benneditto nessa gravação em que o babalorixá Oboromin T’ogunjá incorpora o Pai Benedito das Almas de Angola para ressaltar que o mundo carece de fé, que pode ser renovada com um banho. Na gravação, Rita Benneditto e os produtores de Encanto estilizam o terecô, ritmo da Umbanda praticada no Maranhão, derivado do tambor-de-mina. O percussionista Papete toca os tambores que fazem Banho de manjericão baixar com força no terreiro de Rita Benneditto.
Música lançada por Jorge Ben Jor em álbum de 1981, Santa Clara clareou ilumina a habilidade de Rita Benneditto de renovar em Encanto músicas já enraizadas na memória afetiva do povo brasileiro. Quando a cantora dá voz a uma música já conhecida, a intérprete redimensiona essa música no universo musical nacional. Santa Clara clareou, por exemplo, é entronizada em contexto mais sagrado no compasso 6/8 do tambor de mina, ritmo do Maranhão. Na visão de Rita Benneditto, Santa Clara clareou é uma oração, um canto para os arquétipos femininos do universo afro-brasileiro. O que justifica a inserção na faixa, como tema incidental, de Iansã guerreira, canto da própria Rita, adaptado pela cantora com Felipe Pinaud. O disco Encanto, a propósito, está repleto de citações e de temas incidentais que sublinham e ampliam o significado das músicas. Sucesso tropicalista de Gilbeto Gil em 1968, Bat macumba adorna o registro da música mais antiga do disco, Estrela é lua nova, tema em que o compositor carioca Heitor Villa-Lobos (1887 – 1959) apresenta visão pioneira dos rituais afro-brasileiros. Música editada em 1929, Estrela é lua nova expõe a erudição de Villa-Lobos no trato das canções brasileiras de matriz popular. A junção dos dois temas dilui pré-conceitos e negatividades sobre a palavra macumba.
Extrapolando as fronteiras do Brasil, sem perder a fé, Encanto apresenta releitura do mambo Babalu (1939), um dos grandes sucessos da compositora cubana Margarita Lecuona (1910 – 1981), propagado no Brasil a partir de 1958 na voz emblemática da cantora fluminense Ângela Maria. Em Encanto, Rita Benneditto joga Babalu em pistas contemporâneas com direito a um arranjo de cordas que evoca o som black da gravadora Motown nessa gravação que possibilita remixes, já que é faixa moldada para a dança, para a festa, para a celebração da fé e da vida. Babalu – cabe ressaltar – é uma personagem da santeria cubana (no candomblé brasileiro, Babalu é um dos nomes do orixá Obaluaê). Uma das muitas referências da religiosidade latino-americana originária da mãe África.
Da matriz africana também descende De mina, música de Josias Sobrinho gravada com a guitarra do roqueiro Roberto Frejat. Por embutir na letra a história da religiosidade maranhense de origem africana, De mina traz Rita Benneditto para sua aldeia, tão local quanto universal. É a seta de Jurema chegando ao seu destino final, após passar pela faixa-vinheta Filha de Tupinambá, tema de domínio público adaptado por Rita Benneditto com Felipe Pinaud. Com arranjo roqueiro, reforçado pelo toque icônico da guitarra de Frejat, De mina repõe a artista em seu solo sagrado. O que explica e justifica as fotos da capa e encarte do disco, feitas nos Lençóis Maranhenses.
Como a fé e a música nunca tiveram fronteiras, Encanto aporta ao fim no terreirão do samba. O que é dela é meu é um samba do bamba carioca Arlindo Cruz feito especialmente para Rita Benneditto. Com seus parceiros Rogê e Marcelinho Moreira, Cruz não somente fez um samba para Rita – inspirado pelo ponto da cigana – como também gravou a composição com a cantora. É a expansão da fé através da deusa música. É o fecho simbólico de Encanto, disco que não deixa dúvidas de que, em qualquer terreiro ou lugar, a religião de Rita Benneditto é a música.
Mauro Ferreira
Outubro de 2014